Skip to main content

Sao Paolo (Brasil), 7 de abril de 2016. Por Elvira Gotter (*) A minha experiência clínica como acompanhante terapêutica (at) de pacientes com Doença de Alzheimer (DA) percebi, através da história narrada pelos filhos ou pelo próprio paciente, que o disparador da doença está relacionado, muitas vezes, a uma perda não elaborada, como a morte de um filho de forma trágica, a morte do companheiro/a de forma inesperada, a aposentadoria, a perda do trabalho, trazendo como consequência a dificuldade da pessoa ser inserida no mercado laboral, a falência da própria empresa, a não aceitação da velhice com suas perdas físicas, seguida da falta de perspectivas de criar novos laços afetivos, entre outros.

Segundo Gotter (2013) “as perdas provocam uma quebra narcísica e confrontam o sujeito com sua impotência perante a vida. Isso causa um sentimento de angústia e desamparo determinado pela consciência de finitude”.

Para Loureiro (1998), a sociedade vê o idoso como um estereótipo de incapacidade, negando-lhe muito cedo as imagens de desejo. O velho, assim, não tem direito de sonhar e reprime seus desejos, seus projetos e suas potencialidades latentes.

Nessas situações observa-se uma fragilidade do sujeito perante o que é vivenciado como uma ameaça desprazerosa proveniente do mundo exterior, provocando uma sensação penosa de vazio, de uma grande falta que não pode ser preenchida pelas simbolizações. Em todos esses casos nota-se uma dificuldade no trabalho de elaboração do luto, pois a pessoa se apega à lembrança do objeto perdido e, deste modo, sucumbe a um “sério episódio depressivo”. Neste sentido podemos falar de um luto patológico em que a libido apresenta dificuldade de desligar-se do objeto causa de satisfação (Kehl, 2009).

Acontece uma inércia que dificulta a mudança e leva a pessoa a um vazio existencial, que se exprime na clínica como a falta de significações e de metáforas, impedimento para a emergência de novos sentidos. Segundo Fédida (2002), a depressão se apresenta como um impedimento dos movimentos da vida psíquica e da vida externa, uma abolição de qualquer devaneio ou desejo. Uma violência do vazio parece dominar o pensamento, a ação e a linguagem. Esse vazio, essa falta de significação, a não elaboração do luto pode levar à melancolia de involução ou à demência (Peruchon, 1995).

Quando falamos de vazio nos referimos à dificuldade do desejo de encontrar outros caminhos de satisfação. Além da necessidade, que é puramente biológica, pareceria que há como um estancamento da energia vital, inibindo o sujeito na sua procura incessante de realizações ilusórias para suprir a falta, não investindo mais no mundo que o rodeia.

Conforme Goldfarb (2004) a depressão por vazio seria a reação do sujeito perante a perda, uma amnésia que torna impossível o trabalho de luto. Não há uma substituição de objeto que é o que acontece no luto normal.

Na clínica de pacientes com DA podemos observar um estado de desvitalização. Para Maldavsky (2007), a desvitalização seria uma defesa contra Eros atribuída à pulsão de morte, e como consequência da diminuição da tensão vital há um impedimento para que o sujeito atenda exigências pulsionais tanto amorosas quanto hostis.

A pulsão de morte não atua sozinha, mas aparece intricada com a pulsão de vida. O objetivo da pulsão de vida é criar laços, realizar novas formações, enquanto a pulsão de morte tem como meta o inanimado. Tânatos, a pulsão de morte, realiza seu trabalho silenciosamente: é indizível e invisível, ou seja, além da representação-palavra e da representação-objeto, além do aparelho psíquico, do prazer.

Conforme Peruchon (1995), nas demências, a pulsão de morte age desintegrando o aparelho psíquico. Há uma desintrincação pulsional maior: essa é a maneira da pulsão de morte expressar sua especificidade. Gerald Le Gouès nomeia de Psicolisis a esse processo de desconstrução progressiva do aparelho psíquico do sujeito.

Em pacientes com Doença de Alzheimer (DA) e alguns casos com demência mista – Alzheimer e demência de múltiplos infartos (MID) – observa-se a grande dificuldade que apresentam na comunicação verbal. Na procura de instrumentos que instiguem o indivíduo a falar, a fotografia é considerada uma ferramenta rica para estabelecer um contanto com o mundo interior da pessoa e, dessa maneira, preencher partes da sua história de vida, observando também a linguagem corporal perante algumas fotografias significativas para a pessoa em questão.

Sanz (2009) criou a metodologia da Fotobiografia para a clínica, que pode ser usada por qualquer corrente psicológica. Essa técnica é muito importante e significativa para reativar as lembranças e as emoções que despertam essas vivências, muitas vezes esquecidas pelo paciente. Para a autora é importante estar atento não só à linguagem verbal como também à linguagem corporal. Por meio da história narrada acontece uma elaboração dos lutos, ressignificando a própria vida e reconstruindo, dessa maneira, sua a história.

Em um dos casos como AT de uma senhora de 95 anos, diagnosticada com demência mista DA e MID, o álbum de fotografias da escola foi muito interessante para resgatar as histórias da época do colégio, ocasião em que a paciente foi muito feliz, lembrando-se de quase todos os nomes e também de alguma anedota das pessoas fotografadas.

Durante a narrativa das histórias, com uma linguagem pobre, com esquecimento de palavras, foi possível observar o desejo de lembrar o máximo possível dessa época da sua juventude. Essa mesma pessoa perante fotografias mais recentes, de parentes próximos, não conseguia lembrar os nomes, sobretudo, dos netos, devido a grande dificuldade de registrar os acontecimentos atuais.

Entretanto alguns episódios antigos aparecem com maior nitidez, porém, na medida em que avança a doença, essas lembranças mais antigas também começam a desaparecer, surgindo só em momentos isolados. Segundo Goldfarb (2004):

Após um certo tempo o passado será também esquecido como relato organizado historicamente e passível de ser relatado, conservando-se só a memória de alguns fatos, como ilhas de saberes, sem conexão aparente entre si.

Um livro de fotografias trouxe em outra paciente, de 86 anos, as lembranças da cidade onde nasceu, narrando sobre a época da escola e do namoro com a pessoa que mais tarde viria a ser seu esposo. Foi nesses relatos que surgiu a lembrança da morte intempestiva do marido, ocorrida anos atrás. Possivelmente esse significativo e penoso acontecimento a confrontou com a fragilidade da vida e, por conseguinte, com a realidade da sua própria morte.

Não conseguindo realizar um luto pela morte do esposo, e desamparada ante a impossibilidade de elaborar um luto pela própria vida, ela diz: Para que vivemos se depois temos que morrer? Como diz Goldfarb (2004): “E como todo processo de luto exige um trabalho elaborativo que nem sempre é possível, então, o eu é invadido pela angústia de morte”.

Através dos álbuns dos aniversários, dos últimos anos, logrei que uma das pacientes resgatasse histórias dessas datas. Algumas vezes demonstrava certo desconforto pela morte de pessoas que apareciam nas fotografias manifestando-se, com um: não quero mais olhar as fotos. Há uma dificuldade de enfrentar a morte dos seres queridos – nesse caso de uma amiga muito próxima com a qual ela viajava depois da morte do esposo. Depois de um tempo, olhando outras fotografias começou a falar das viagens que tinha realizado com essa amiga. Houve um pequeno resgate da memória, um intento de elaborar um luto, que logo ficou no esquecimento por meio do silêncio.

Esses pacientes conseguiram em alguns casos resgatar, através das fotografias, histórias de situações agradáveis proporcionando certo prazer na reconstituição de histórias esquecidas. Porém, em alguns momentos, essas histórias prazerosas se entrelaçavam às histórias dolorosas e significativas que, através de um vocabulário pobre, com lacunas de esquecimentos, tratavam de dar um sentido a algum desses acontecimentos.

Esses flashes de memórias não têm, na maioria das vezes, continuidade porque em pouco tempo caem no esquecimento, provocando no at. uma impotência perante esse vazio difícil de ser preenchido pelas significações, sendo que a alternativa é a procura de novas estratégias para os novos encontros. Para Gotter (2012):

As intervenções do at decorrem de uma estratégia relacionada à transferência, estabelecendo um vínculo de confiança, que coordenará as operações de longo prazo, e de uma tática relacionada ao momento da intervenção. As intervenções táticas dependerão de cada caso singular e particular, não existindo a priori uma atividade padrão. Ela é pensada em função da problemática de cada sujeito.

A fotografia foi um instrumento importante para que os pacientes se lembrassem de alguns fatos expressivos das suas vidas, momentos nos quais se observava um movimento da libido em busca de um significado para a imagem apresentada. É como se ao falar dessas lembranças se sentissem momentaneamente amparados, apesar do desamparo gerado pela própria doença. Aquilo que em alguns momentos aparece como estranho se torna novamente familiar.

Em outras ocasiões foram utilizados textos sobre algum acontecimento de importância para o paciente, ou atividades que não produzissem ansiedade, mas a fotografia foi a ferramenta que mais os mobilizou.

Na clínica do AT, com pacientes demenciados, observamos que a pessoa tem dificuldade de nomear os objetos, não encontra palavras para se expressar e recorre, muitas vezes, a outras palavras para exprimir seu pensamento. Por exemplo, no lugar de uma roseira ele diz planta com espinhos, também observamos a invenção de novas palavras. Nesse momento, a escuta atenta do profissional, perante a abertura de uma vida psíquica, ajudará a decifrar o significado das palavras.

Nas pessoas mais preparadas, como possuem um vocabulário mais amplo, pode haver a troca de uma palavra por outra com o mesmo significado, camuflando assim as dificuldades. Cabe lembrar que nos estágios iniciais se encontram alterações sutis de linguagem difíceis de serem detectadas.

Um estudo feito em parceria entre a University College de Londres e a Unidade de Ciências do Cérebro e da Cognição do Conselho de Investigação em Medicina do Reino Unido e publicado na revista “Brain”, sobre os últimos livros da escritora irlandesa Iris Murdoch, explica que a doença de Alzheimer era já visível no último romance da escritora.

O estudo descobriu que, apesar da estrutura e da gramática se manterem constantes na sua obra, não aconteceu o mesmo com o vocabulário, que diminuiu consideravelmente. A linguagem usada no último romance – Jackson´s Dilemma – foi mais simples do que nos anteriores e observou-se também uma tendência à repetição (Portal Cronopio Literatura).

Isso pude constatar num senhor de 80 anos com DA, escritor de contos e crônicas, na medida em que a doença progredia o vocabulário dos seus textos empobrecia e o tamanho diminuía consideravelmente.

Uma das pacientes não conseguia identificar os objetos do seu dormitório, falava relógio para indicar o rádio, e importa ressaltar que o relógio era um objeto significativo para ela, trazido pelo filho de uma viagem cuja pulseira, de tanto uso, estava a ponto de se quebrar, sem possibilidade de conserto. Esse objeto tinha um grande valor sentimental. A grande preocupação dela eram as viagens do filho: -[ …] ele quase nunca está, sempre está viajando. De alguma maneira o filho era seu amparo porque representava seu esposo falecido.

Chamava o filho pelo nome do esposo e ao dizer: …ele sempre está viajando…, provavelmente encontrava uma forma de representar a “ausência” do marido. Esse acontecimento traumático não foi, possivelmente, integrado à cadeia de significantes para sua simbolização e elaboração. Nas fotos ela confundia o filho com o marido. Ela nos assinalava seu mal-estar, porém ficava difícil realizar a simbolização. Num dos encontros sugeri que ela usasse novamente o relógio, numa tentativa de estabelecer uma relação objetal, oferecendo-lhe uma segurança afetiva. Significativamente a paciente não conseguia ler as horas em outros relógios, porém ela conseguiu no presenteado pelo filho.

Por outro lado o rádio, que ela não conseguia nomear, representa a comunicação, essa comunicação difícil com o filho, que muitas vezes se ausentava por trabalho.

Na medida em que a DA avança, o campo simbólico enfraquece, os transtornos de linguagem se vêm afetados pela afasia e pela agnosia, há um desinvestimento do mundo exterior estabelecendo escassa ou nenhuma relação objetal, transtornos de locomoção e a falta de memória da história do sujeito. Corta-se a comunicação e o individuo ao não ser compreendido se fecha cada vez mais. O sujeito perde a memória, a representação-palavra, a representação-objeto e sua própria história.

Para Mannoni (1995), certas formas de demência acontecem devido a um duplo encerramento, do idoso que se fecha cada vez mais no seu mundo e do outro que não mais se comunica com o idoso, isolando-o.

Messy (1999) diz, parafraseando Lacan, que a palavra não é a linguagem e, repetindo Lacan, coloca: Por seu próprio corpo o sujeito emite uma palavra. Dessa forma nos casos de atendimento de pessoas com DA é importante procurar além das palavras aquilo que o paciente quer nos comunicar.

Surge um grande desafio para o at nos atendimentos de pacientes com demência: manter uma escuta diferenciada, captar os sinais, gestos provenientes do paciente e estimular a comunicação dentro de um espaço de continência

(*) Elvira GotterPsicanalista. Pós-graduação latu sensu em Gerontologia. Pósgraduação latu sensu em Sexualidade Humana. Pós-graduação latu sensu em Psicopatologia Psicanalítica. Coordena Grupos de Reflexão e Grupos de Cinema – Reflexão

Fuente: Portal do Envelhecimento

Leave a Reply